quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

AINDA TEMOS QUE SUPORTAR ISTO



Em prantos, Lula revela-se um mestre na arte de sair

Antes de discorrer sobre a motivação das lágrimas, convém abrir um parêntese.


No esforço que empreende para cavar um lugar de destaque na posteridade, Lula vem se revelando um cultor da arte de deixar o poder.



Nunca antes na história desse país um presidente da República cuidara com tanto zelo da própria saída.



Só Getúlio Vargas teve a preocupação de preparar o desembarque com semelhante esmero. Com uma diferença.



Em 1954, Getúlio bateu em retirada do poder tão aclamado quanto Lula. De ditador fascista, fez-se salvador da pátria.



Foi acompanhado e pranteado por centenas de milhares de brasileiros. Porém, saiu do Palácio do Catete, a antiga sede do governo, no Rio, deitado num caixão.



Diferentemente de Getúlio, que optou por sair da vida para entrar na história, Lula, caiu na vida para abrir as portas da história.



De ex-operário de esquerda, Lula converteu-se num presidente conservador. Deve à conservação dos pilares econômicos liberais que herdou de FHC parte de seu êxito.



Domada a inflação, irrigou os programas sociais que o converteram em neo-salvador e encobriram os desvios éticos que fizeram do PT um ex-PT. Fecha parênteses.



Deve-se a organização da despedida pernambucana ao governador Eduardo Campos, presidente do PSB.



Convidados em comerciais de TV que anunciavam a presença de artistas populares, os conterrâneos de Lula acorreram ao evento aos milhares.



Acompanhado ao vivo pelas lentes da NBR, a emissora oficial que cobre as atividades do Poder Executivo, Lula verteu lágrimas três vezes.



Chorou ao ouvir o poeta popular Antônio Marinho declamar versos que enalteciam os “feitos” de seu governo. As estrofes terminavam numa frase indefectível:



“Pernambuco agradece ao presidente mais amado da terra brasileira”.



Chorou pela segunda vez ao escutar o discurso do anfitrião Eduardo Campos, neto do amigo Miguel Arraes, morto em 2005, o ano do mensalão.



Chorou uma derradeira vez ao assumir, ele próprio, o microfone. Ao fundo, a voz da massa oscilava entre dois coros.



Ora entoava um bordão recente –“Lula, guerreiro, do povo brasileiro”— ora gritava o jingle de 89 –Olêêê, olêêê, olêêê, Olááá, Lulaaaa, Lulaaaa...”.



Lula atribuiu a Deus a trajetória que o conduziu da miséria de Caetés –cidade desmenbrada de sua antiga Garanhuns –para o triunfo planaltino.



Depois de evocar o Padre Eterno, virou-se para um pastor presente no palanque. Perguntou: Você não acha que posso ser pastor quando largar a Presidência?



Trazia atravessada no peito uma faixa que acabara de receber de Eduardo Campos. Símbolo da ordem do mérito dos Guararapes, maior comenda do Estado.



Entre risos, anunciou que dormiria com o aparato sobre o pijama. Uma forma de atenuar a dor que vai sentir ao entregar a Dilma Rousseff a faixa presidencial.



Recordou as três derrotas que colecionou (1989, 1994 e 1998) antes de triunfar em 2002. Atribuiu o triplo infortúnio ao receio que os brasileiros pobres tinham dele.



Disse que o eleitor iletrado preferia os candidatos diplomados a um presidenciável tão “despreparado” quanto o dono do voto. O povo não confiava em mim, disse.



Emocionou-se ao lembrar a visita que fizera, na campanha de 1989, a uma comunidade pobre de Recife, a Casa Amarela.



Entrou num barraco miserável. E ouviu da dona: não voto em você porque você vai tomar tudo o que eu tenho. Afora o medo, não tinha nada.



Lula contou o ocorrido à mulher, Marisa. Declarou-se assustado. Uma pernambucana a quem não queria senão ajudar tinha medo dele.



Marisa aconselhou-o a perseverar. O dia da vitória haveria de chegar. Chegou em 2002, Lula rememorou, entre lágrimas.



Eleito depois de aparar a barba e assinar a Carta aos Brasileiros, na qual beijou a cruz do mercado, Lula passou a duvidar de si mesmo.



Será que eu tenho condições?, perguntava a Marisa e aos seus botões. Decidiu, segundo disse, que não erraria.



Um eventual malogro não seria apenas seu, mas “da classe trabalhadora, dos pobres” que haviam superado o medo de votar no próprio espelho.



Ao cabo de muitas lágrimas, memórias e auto-elogios, Lula fez um apelo à platéia: “A palavra de ordem é apoiar a companheira Dilma”. Em seguida, anunciou:



“Saio da Presidência, mas não pensem que vão se livrar de mim, porque vou estar nas ruas desses país para ajudar a resolver os problemas do Brasil”.



Mais vivo do que Getúlio, Lula escreve o verbete da enciclopédia sem sair da história. Sai da Presidência, mas soa como se preparasse o retorno.



- Siga o blog no
twitter.

Escrito por Josias de Souza

Nenhum comentário:

Postar um comentário