segunda-feira, 2 de abril de 2012

Elitismo autoritário






Janio de Freitas, Folha de SP

A Lei Seca veio embaralhar, de uma parte, a combinação bebedeira/automóvel e, de outra, o autoritarismo.

Para começar, é uma lei elitista típica do Brasil. Quem dispõe de mordomias por posses próprias ou pagas pelo Tesouro Nacional, como é o caso dos congressistas que impuseram a lei, está livre para beber à vontade, a qualquer hora, e transpor qualquer blitz. Suas posses ou o dinheiro oficial lhe proporcionam o serviçal conveniente para as circunstâncias: o motorista.

A lei é, portanto, contra a classe média. Essa que beberica como uma pequena distensão, como um lazer à falta de melhores.
Quem bebe um ou dois copos de vinho em várias horas de uma festa ou de um jantar, por exemplo, compõe a imensa maioria dos atingidos pelo rigor arbitrário da lei. Mas, como norma, não são os que causam acidentes por terem ingerido alguma porção alcoólica. Em contrapartida, a probabilidade de deter os que perdem as condições de dirigir é insignificante. Um êxito apenas ocasional, dada a forçosa desproporção entre as blitze possíveis e a área urbana livre para os embriagados trafegarem sem encontrar-se com a malha fina.

A lei é elitista ainda na sua destinação. Inspirou-se e pretende (em vão, como se tem visto) prevenir acidentes em que motoristas alcoolizados têm feito vítimas chocantes, essencialmente, por sua condição social. E pelos bairros onde mais ocorrem tais acidentes. A frustrada ação repressora o comprova o elitismo: as blitze não são feitas na periferia ou subúrbios, onde -os costumes sugerem- seria farta a coleta de desrespeito ao índice exíguo da lei. Como se deduz do volumoso noticiário de acidentes naquelas áreas. Ou seja, só os bacanas não devem matar e matar-se com seus carros.

A lei confirma o seu elitismo também por outra via trágica: os acidentes terríveis com ônibus intermunicipais e interestaduais estão todos os dias na TV, com dezenas e mais dezenas de mortos, feridos e incapacitados. Os acidentes com carretas e caminhões não chocam menos. Mas a Lei Seca não lhes concedeu sequer a menor menção.

É indispensável que os motoristas de ônibus sejam submetidos ao bafômetro antes da partida. E outra vez ao sair das paradas intermediárias. Os motoristas de carretas e caminhões provocaram a proibição de venda de bebida na beira das estradas, mas nem a restrição é cumprida, nem é suficiente para restringir a guarda da bebida. E nessas omissões da autoridade estão as causas da sucessão de desastres horríveis com veículos pesados. Sem providências contrárias.

Está mais do que provada a ineficácia do autoritarismo como sistema socialmente educativo. O que pode mudar as condutas sociais é a persuasão. A campanha da camisinha é exemplo excelente: persuasiva, por impossibilidade de ser impositiva, pegou com rapidez e criou novo costume. O abandono do cigarro por milhões de fumantes convictos dá outro exemplo: é fácil ouvir que a rejeição veio do conhecimento dos efeitos maléficos, martelados pelos médicos, e não das proibições de fumar ali ou acolá. A maior parte das proibições decorreu já da rejeição que se difundia.

A modalidade da Lei Seca se explica muito por sua origem: a bancada evangélica. A Ação Católica e outras organizações religiosas, dedicadas à influência política, não retornaram ao Congresso e à política na volta da democracia. Com penetração crescente, porém, os novos evangélicos assumiram seus papéis. Extremados no conservadorismo, só admitem leis e regras sujeitas às suas concepções. Nisso, mesmo a qualidade do fazer não parece importar. A Lei Seca e, já andando pelo Congresso, seu extremismo final saíram dessa usina.

A lei elitista anti-etilista é um produto do autoritarismo que não crê em educação social e em formação de civilidade.

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