sábado, 21 de janeiro de 2012

A Constituição de 88 está longe de ser “cidadã”, como queria Ulysses Guimarães. A não ser que se pense o indivíduo como marionete do Estado.



Escrito por José Maria e Silva



A Constituição da República Federativa do Brasil completou mais um ano de vida em 5 de outubro último. Batizada de “Constituição Cidadã” por Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembleia Nacional Constituinte, o nome pelo qual é mais conhecida — “Constituição de 88” — não deixa de ser revelador. A data apensada à Constituição é uma prova de que a democracia é que é um regime de exceção na história do Brasil, daí a profusão de Constituições datadas, marcando os recomeços da Nação. Apenas durante os 112 anos da República foram seis Constituições contra apenas uma de todo o Império. Mas, caso se leve em conta a profundidade das emendas feitas pelo regime militar à Constituição de 1967, pode-se falar em uma nova Constituição em 1969, o que daria um total de sete Constituições ou uma Constituição a cada 16 anos.
Para os padrões nacionais, portanto, a Constituição de 88, que acaba de completar 23 anos, é quase senil. Em compensação, já foi remendada 73 vezes — 67 emendas constitucionais propriamente ditas e seis emendas de revisão. E recebeu sua primeira emenda com apenas três anos e quatro meses de vida, por um motivo banal — a necessidade de definir a remuneração de deputados e vereadores, tema que poderia ter sido regulamentado pela legislação comum. O texto original previa que a remuneração dos deputados estaduais seria fixada em cada legislatura para a subsequente, mas, como não havia um teto para os reajustes e muitas Assembleias Legislativas cometiam abusos, a primeira emenda à Constituição de 88 resolveu estabelecer um limite — que o subsídio dos deputados estaduais não poderia ultrapassar 75% do que ganham os deputados federais

Pouco adiantou. Seis anos depois dessa alteração, o Congresso Nacional aprovou uma nova emenda constitucional, a Emenda nº 19, tratando dos subsídios dos parlamentares, entre várias outras questões relativas à administração pública. Com isso, os subsídios dos vereadores também foram vinculados em até 75% dos subsídios dos deputados estaduais, numa tentativa de evitar altos salários nos Legislativos municipais. Mas como a lei não cria a realidade e pode ser desmoralizada pelos fatos, o que era para ser um teto acabou sendo um piso e, em todos os Estados, a tendência das Assembleias Legislativas é reajustar automaticamente os subsídios dos deputados estaduais sempre no limite máximo previsto na Constituição. Com isso, induz as Câmaras Municipais a fazerem o mesmo.

Esse é apenas um exemplo do quanto uma lei pode ser inócua ou até produzir efeitos adversos, quando despreza seu contexto social e histórico. Infelizmente, as Constituições brasileiras sempre tiveram essa tradição de se alienar da realidade — tendência que a Constituição de 88 exacerbou. Como observa o constitucionalista italiano Nicola Matteucci (1926-2006), no “Dicionário de Política”, de Norberto Bobbio (1909-2004), uma Constituição “é, de fato, a própria estrutura de uma comunidade política organizada, a ordem necessária que deriva da designação de um poder soberano e dos órgãos que o exercem”, sendo, deste modo, “imanente a qualquer sociedade”. Pode-se dizer que a Constituição de 88 não é imanente, mas transcendente em relação à sociedade brasileira. Ela não emana do povo, como diz o seu preâmbulo, mas da vontade doidivanas das elites oligárquicas, corporativas e utópicas que a fizeram na época.
A Constituição de 88 é uma espécie de filha tardia da Revolução Francesa e consolida no Brasil a “Era dos Direitos”, para usar a expressão cunhada por Norberto Bobbio como título de uma de suas principais obras, publicada originalmente em 1990. Para o jurista italiano, os direitos do homem nascem no início da Era Moderna e são um dos principais indicadores do progresso histórico. Mas não são fáceis de definir, segundo ele, pois variam de acordo com as épocas e as culturas. Talvez por isso, Bobbio afirmou: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”. Problema político que os constituintes de 88 levaram ao pé da letra, protegendo excessivamente os direitos reais e imaginários dos brasileiros a ponto de fazer do Brasil uma Nação sem nenhum dever.

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